segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O Masculino Sagrado


A primeira manifestação do masculino como sagrado surge a partir da valorização do papel do antigo caçador como arquétipo masculino. O Deus com chifres de cervo, metade homem, metade animal, mostra a fusão da dualidade expressa na relação caça-caçador, que perde seu caráter dicotômico à medida que a experiência da caça traz dois resultados: quando bem sucedida, o homem vitorioso traz sua presa e se alimenta dela, ingerindo a força da vida presente no animal e perpetuando sua própria existência; quando mal sucedida, o homem torna-se a própria caça, é morto e devorado (seja por animais ou pela terra, no processo de decomposição), servindo à força da vida e perpetuando a existência de outros seres vivos. Perceba, não há como prever os resultados do confronto entre homem e animal – apenas no resultado final, onde um encontra a morte e o outro pode continuar vivendo é que define-se quem foi caçado de fato.

Essa dança perpétua entre a vida e a morte nos traz valiosos ensinamentos: ambas compõe algo que parece maior, muito mais amplo que apenas o homem e o animal; neste confronto, as próprias forças da terra, da vida, da floresta se movem para saber quem preservar e quem destruir. Também nos mostra que a vida depende da morte e se alimenta da vida; para que a existência da vida na Natureza possa ser perpetuada, é preciso que parte dessa mesma Natureza perca uma parte de si mesma para servir à vida. Ou melhor, doe uma parte de si mesma.

É dito que aos melhores caçadores ficavam reservadas as melhores partes do animal, muitas vezes o falo. A prática de comer o animal sacrificado vai muito além da simples ideia de nutrição e sobrevivência, mas relaciona-se ao processo de introjetar e interiorizar este animal, tomar para si seu poder, partilhar de sua essência, seu espírito. É sabido que muitos animais eram tidos para as tribos como Totens – muito mais que espíritos protetores da tribo, falavam sobre sua própria natureza e consciência enquanto grupo. E ainda além, o animal como Totem era a ligação da tribo com o Sagrado. Em “Totem e Tabu”, Freud nos mostra como a figura do animal Totem estava relacionada a própria estrutura social rudimentar da tribo, determinando, inclusive, suas normas e organização.
Nesses tempos, o animal selvagem e ameaçador era ao mesmo tempo temido e desejado; era cercado de um ar de mistério e magia próprio dos Deuses. Se olharmos para esse ponto com os olhos destes velhos povos, perceberemos que os animais selvagens foram os primeiros Deuses. Portanto, comer da carne de caça era comer dessa essência de mistério, tornar-se o próprio animal, absorver suas características, e ao mesmo tempo partilhar a essência do Numinoso. Esse rito permanece até hoje em ritos neopagãos, e até mesmo na Igreja Católica, que se apropriou de tal Mistério em seu rito de comunhão (a diferença é que o Cristo é chamado “Cordeiro de Deus”; não é um animal selvagem caçado, abatido e partilhado, mas um sacrifício voluntário, ligado aos animais domesticados e simbolizado na missa como o Pão, ligando a um tempo de pastoreio e agricultura, posterior ao que falamos aqui; isto o liga a outras raízes mistéricas pagãs que abordaremos em outro texto).

O Deus de Chifres surge então como a força mediadora que garante o equilíbrio da Natureza. Por vezes favorecendo os homens, por vezes favorecendo os animais, este Deus garantia que o equilíbrio acontecesse e que ambos os lados servissem um ao outro, unificando em si homem e animal, vida e morte, como produtos de uma força maior, que move-se em si mesma, a própria Dança Espiral do Êxtase. Essa é a essência do Deus de Chifres: ele era ambos, a caça e o caçador. Ele ensinava aos homens as habilidades e os mistérios da caça bem sucedida e os colocava nesta aventura misteriosa, mas como pagamento, exigia que estes homens também servissem a força da vida em certo momento.
Isso significa que o papel de Caçador (seja no Paleolítico, seja como vivenciamos este Arquétipo em nossas vidas atuais), já trazia em si a promessa da morte. Os ritos de passagem dos meninos da tribo não falavam apenas sobre tornar-se homem, mas sim sobre tornar-se o Caçador, ativando o Arquétipo. E ser caçador implicava justamente em estar em constante contato com a possibilidade da morte; porém, para o Caçador, o medo da morte não é nada frente ao desejo pelo embate, ao prazer trazido pelo mistério, a vontade de provar de suas próprias habilidades, de seu corpo, de seus potenciais – a sensação de estar vivo, estar no corpo físico, material, existir. Mesmo que isso nos leve a morte, vamos ao encontro da presa. Desejamos a morte, personificamos a morte e até a vivenciamos. Mas tudo isso para que nossa vida possa ser perpetuada.

Para concluir, vemos que o Deus Caçador é, na verdade, um mantenedor da vida e um Deus Integrador. Ele é aquele que nos ensina e nos permite a vivência de nossa agressividade e competitividade de forma saudável, equilibrada e coerente com o meio social. Não, não estou sugerindo que devemos ir para o meio do mato após o trabalho para trazer o jantar; cabe a nós a busca pela essência deste Deus primitivo para que ele nos ensine a vivermos o Caçador em nossos tempos modernos e atualizarmos o mito. E este contato é pessoal, entre cada homem e o Deus. Mas lembre-se, o Deus de Chifres prezará para que o equilíbrio seja mantido; não só a expressão de nossos potenciais físicos no meio, mas também a expressão desses potenciais no meio em nós serão trazidos por ele. Mas note, isto também é uma bênção, pois não há como ser o Caçador sem ser também a Caça do outro, e esta é a lição que este Deus tem a nos trazer.

 Leo F. Dianus